O LADO SOMBRIO DA TECNOLOGIA
Entrevista com a Neurocientista Susan Greenfield –
Por Simone Costa
A neurocientista inglesa alerta para o fato de que
os efeitos positivos dos estímulos da internet, redes sociais e videogames,
em excesso, provocam riscos para o cérebro.
Especialista em doenças degenerativas do cérebro,
a pesquisadora Susan Greenfield, de 62 anos, é presença constante nos
principais debates sobre os efeitos da tecnologia na mente humana. Autora de
três livros que se tomaram best-sellers, ela defende a tese de
que passar tempo demais na frente de computadores, games, tablets
e smartphones causa alterações cerebrais da mesma natureza daquelas advindas
do Alzheimer, embora não tão destruidoras. Susan se refere mais precisamente à
dificuldade de discernir eventos passados de situações presentes e até de
projeções futuras, disfunção cognitiva comumente associada ao Alzheimer. Susan
Greenfield foi a primeira mulher a presidir a Royal Institution, e mais antigo
centro de pesquisa independente do mundo. Depois de doze anos, ela deixou o
cargo alegando que vinha sendo vítima de uma campanha machista. Feita baronesa
em 2001, a professora de Oxford é conhecida também por ser uma ativa popularizadora
da ciência na Inglaterra, produzindo e apresentando documentários que lhe
valeram a fama de ser a versão local de Carl Sagan, o lendário cosmólogo americano, morto em 1996.
Veja - Qual é o
paralelo entre a doença de Alzheimer e os efeitos sobre o cérebro do uso
exagerado de aparelhos conectados à internet?
Susan Greenfield - Fui mal interpretada em uma
entrevista e passaram a me atribuir algo que eu não disse. O Alzheimer, à
medida que avança, provoca a perda de células cerebrais, conduzindo o paciente
a um estado de alienação crescente. Não afirmei que a tecnologia provoca a
morte dos neurônios. Não há prova científica disso. O que realmente disse e
reafirmo é que computadores, tablets, smarrphones, enfim, todos os
dispositivos interativos, quando usados excessiva e ininterruptamente, deixam
a mente em um estado de confusão sobre o aqui e o agora muito semelhante aos
efeitos do Alzheimer. A pessoas nesse estado perdem momentaneamente a noção
clara do que seja passado, presente ou futuro. Alguém imerso nesse universo
virtual está sempre de prontidão para responder rapidamente a um e-mail
ou uma mensagem de bate-papo. Essa disponibilidade instantânea para os apelos
digitais interativos, dominada pelos sentidos e não pela cognição, deixa a
mente em um estado semelhante ao provocado pelo Alzheimer ou mesmo pelo
autismo. Ainda não existem evidências de que o cérebro sadio submetido de
maneira intermitente a esses estímulos sofrerá transformações fisiológicas
permanentes. No entanto, essa é uma hipótese a considerar seriamente a longo
prazo.
Veja - A
senhora saberia definir o limite máximo de tempo de imersão diária no mundo virtual
ao qual alguém deveria obedecer?
Susan Greenfield - Pelos dados que temos em mãos
hoje, ainda não somos capazes de definir esse limite. A questão não é
propriamente o tempo que se passa a on-line. O cerne do problema é
deixar de exercer, por causa da internet, outras atividades essenciais
para o desenvolvimento pleno do cérebro e para a manutenção da saúde mental.
Passar cinco horas seguidas jogando videogame ou no Facebook pode ser
bem estimulante, mas são cinco horas a menos para abraçar alguém, caminhar pela
praia, conversar cara a cara com um amigo em um bar ou restaurante. O cérebro
de um bebê é um recipiente passivo de sensações, que gradualmente começam a se
organizar, o que permite a interpretação por associação das informações que ele
recebe. A partir daí, o cérebro formula conceitos com base nas memórias e no
conhecimento. É assim
que cada um forma a própria identidade. A diversidade e a frequência dessas
interações corriqueiras são essenciais para a construção da individualidade
não apenas na primeira infância, mas durante toda a vida. As crianças se formam
subindo em árvores, sentindo o calor da luz solar no rosto, correndo atrás dos
amigos em um parque. O perigo é satisfazer-se com um simulacro digital das sensações
reais.
Veja - A noção
predominante entre os estudiosos, porém, é que os estímulos digitais estão
aumentando a eficiência do cérebro humano. Essa noção é equivocada?
Susan Greenfield - Obviamente, qualquer atividade
contribui para o desenvolvimento cerebral. Estudos feitos nas últimas décadas
comprovaram a capacidade de o cérebro reorganizar-se e reinventar-se a todo
momento por meio de estímulos externos.É a neuroplasticidade. Os videogames
desenvolvem a coordenação motora e a memória. Isso está comprovado. Nos
adultos, sobretudo nos idosos, a interatividade mostrou-se uma excelente
ferramenta para estimular a neurogênese, a formação de novas células
cerebrais, e até promover certo bem-estar mental. Há relatos científicos de
diminuição dos sintomas da depressão em virtude de relacionamentos que o
paciente retomou ou criou nas redes sociais. Minha mãe é Viúva, tem 85 anos e
mora sozinha. Meu irmão e eu gostaríamos muito que ela tivesse uma conta no
Facebook. Mas, infelizmente, ela se recusa. Meu ponto, então, não é a
condenação da era da informação. O que eu reafirmo é que a exemplo de um
carro, que nos serve tanto mas com o qual podemos atropelar e matar alguém,
obter o benefícios e evitar os males das nova tecnologias depende apenas do
usuário.
Veja - A
comunidade científica levou a sério seu alerta sobre o perigo de os
videogames, na infância, estarem produzindo adultos "sem ética e
atrofiados emocionalmente"?
Susan Greenfield - Essa é uma constatação
irrefutável. Pense na fábula da princesa presa na torre. Existe uma enorme
diferença entre a experiência de ler sobre Rapunzel em um livro e a de
participar de um game em que o objetivo é resgatá-la. O livro apresenta
à criança a narração plena da história da princesa. A vida dela faz parte de um
contexto. Já no game a princesa é apenas um objetivo, não importa nem
como ela chegou a ser aprisionada na torre, não se constrói em nenhum momento
um vínculo emocional com a personagem, tampouco se discutem as questões éticas
de aprisionar alguém ou as virtudes de caráter ou de coração do ato de salvá-la.
A única coisa que importa é ganhar o jogo. Parece-me evidente que são duas vias
bem distintas.
Veja - O
convívio nas redes sociais aceita uma latitude maior na conduta ética das pessoas?
Susan Greenfield - Sem dúvida. O mundo virtual, as
pessoas podem se comportar de um modo como jamais fariam no mundo real. Elas
perdem seus constrangimentos naturais, o que normalmente barra os maus
comportamentos, a rede, muita gente se expõe como jamais faria nem mesmo no
ambiente familiar ou na frente dos amigos mais íntimos. Essa liberalidade
começou com os e-mails, mas atingiu o ápice com o Facebook. Os limites
do certo e do errado estão cada vez mais difíceis de ser definidos. O livro O
Senhor das Moscas, obra-prima de William Golding, conta a história de um
naufrágio de estudantes. Presos em uma ilha e submetidos a enormes privações,
eles perdem o verniz civilizatório e se tomam selvagens. Por alguma razão,
estar nas redes sociais pode produzir o mesmo efeito de desconsideração com os
outros que acometeu os estudantes do livro de Golding presos na ilha.
Veja - Essa
regressão tem raízes na química cerebral?
Susan Greenfield - Sim. O prazer de estar on-line
ou jogando um game libera dopamina em excesso. A dopamina participa do
sistema de recompensa do cérebro, aquele que nos faz querer repetir algo
prazeroso. Ela é liberada quando se come algo saboroso, como chocolate, e
durante o sexo, por exemplo. Cada vez que a criança muda de fase no videogame,
mais dopamina é liberada. A interatividade estimula o cérebro a produzi-la em
demasia. Isso é um problema. O excesso desse neurotransmissor afeta
diretamente o córtex pré-frontal, região do cérebro que é a sede da
consciência, em que a pessoa processa o conceito que faz de si mesma e as
noções de tempo e de espaço.
Veja - Antes
eram as revistas em quadrinhos, depois a televisão, agora a internet e
os games. Será que cada era tem seu falso inimigo do cérebro das
crianças?
Susan Greenfield - Existe uma diferença crucial. As
novas tecnologias são muito mais invasivas e têm um impacto infinitamente maior
até mesmo que o da televisão. As pessoas agora estão sendo levadas a ter uma
percepção da vida como uma sucessão de pequenas tarefas desconectada entre si,
exatamente como no game da Rapunzel. O ser humano é produto de
histórias, da preservação de memórias, enfim, da narrativa, não há
mais narrativa. Tudo não passa de ação e reação.
Veja - Mas a
senhora não acha que tem sido gigantesca a contribuição das tecnologias
interativas para a educação?
Susan Greenfield - Uma pesquisa divulgada no ano
passado, na Inglaterra, derruba essa tese. Três quartos dos professores
ingleses reclamam da crescente dificuldade de concentração dos alunos. Quase todos os pais entrevistados
afirmaram que os filhos gastam o triplo do tempo na frente de uma tela em
comparação com o que dedicam a um livro, não concordo com os especialistas que
sugerem distribuir tablets aos alunos. Isso não resolve. A única maneira
de prender a atenção das crianças nos dias de hoje é ter professores
inspiradores. A tecnologia é fundamental e excitante, mas, sozinha, não
identifica nem desenvolve talentos.
Veja - A senhora
foi criticada por colegas pelo fato de seus documentários e palestras serem
populares demais. O que acha disso?
Susan Greenfield - Costumo citar Carl Sagan, a quem
admiro muito, quando me criticam por falar de ciência de maneira fácil e
acessível. Ele costumava dizer que era um suicídio viver numa sociedade
dependente de ciência e tecnologia e não saber nada sobre ciência e
tecnologia. Entendo os colegas que, por personalidade ou opção, são mais
resguardados. Mas acho que eles não deveriam criticar quem está disposto a
simplificar e divulgar assuntos científicos. No fundo, penso que os cientistas
que não gostam de popularizar a ciência têm medo de, ao falar de igual para
igual com as pessoas leigas, perder a autoridade e o status.
Veja - É verdade
que os integrantes da Royal Society chegaram a anunciar que pediriam demissão
se a senhora fosse indicada para compor seus quadros?
Susan Greenfield - Aconteceram coisas terríveis
nesse episódio. Uma delas foi a falta de ética de meus colegas. As regras de
escolha de membros da Royal Society deveriam ser confidenciais. Quem afirmou
que sairia se eu fosse escolhida deveria ter sido expulso. Além disso, vivemos
em uma democracia. Se os membros não concordavam com meu nome, era só chegar a
um consenso interno. Não era preciso me expor perante a opinião pública, como
fizeram. O que houve, de fato, foi chantagem. As táticas utilizadas pelos meus
colegas foram pobres e não democráticas. Infelizmente, a ciência é uma área na
qual ainda impera o machismo. Isso é lastimável.
Veja - Em um
artigo para o jornal The Guardian, a senhora afirmou que a gravidez era um
contrassenso. Por quê?
Susan Greenfield - Referia-me à questão profisional.
São poucas as mulheres na minha área que conseguem chegar aonde eu cheguei. E
difícil desde o início. No colégio, as meninas recebem menos incentivos do que
os meninos para seguir a carreira científica. Afinal, ciência é coisa de homem.
Quando conseguem superar essa barreira, elas encontram outro obstáculo: a
gravidez. Não sou contra ter filhos, mas na ciência, quem se afasta, mesmo que
por pouco tempo, perde a vez, infelizmente. Eu optei por não ter filhos. Meu
irmão nasceu quando eu era uma adolescente de 13 anos. Essa já foi uma
experiência maternal suficiente para mim.
Veja - A senhora
deixou a presidência da Royal Institution pelo mesmo motivo que quase a impediu
de entrar?
Susan Greenfield - Fui a primeira mulher a comandar
a instituição. Foi uma experiência única. Aprendi a ser uma administradora,
consegui reerguer a Royal Institution e ao mesmo tempo modenizá-la. Também me
aperfeiçoei como acadêmica. No fim de minha gestão, tive problemas sobre os
quais estou proibida de falar por ordem judicial. Mas, apesar de tudo o que fiz
até hoje como profissional, minha grande realização como cientista ocorreu no
campo pessoal, por mais esquisito que isso possa soar. Graças a meu trabalho,
consegui realizar um sonho familiar. Apresentei minha mãe, bailarina, e meu
pai, engenheiro elétrico, à rainha Elizabeth II.
Fonte
– Revista VEJA – Edição 2303 – Ano 46 - nº 2 09/01/2013.
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