sexta-feira, 24 de maio de 2013

O LADO SOMBRIO DA TECNOLOGIA (Veja, 09/01/2013 - páginas amarelas)


O LADO SOMBRIO DA TECNOLOGIA
Entrevista com a Neurocientista Susan Greenfield – Por Simone Costa


A neurocientista inglesa alerta para o fato de que os efeitos positivos dos estímulos da internet, redes sociais e videogames, em excesso, provocam riscos para o cérebro.

Especialista em doenças degenera­tivas do cérebro, a pesquisadora Susan Greenfield, de 62 anos, é presença constante nos principais debates sobre os efeitos da tecnologia na mente humana. Autora de três livros que se tomaram best-sellers, ela defen­de a tese de que passar tempo demais na frente de computadores, games, tablets e smartphones causa alterações cere­brais da mesma natureza daquelas ad­vindas do Alzheimer, embora não tão destruidoras. Susan se refere mais pre­cisamente à dificuldade de discernir eventos passados de situações presen­tes e até de projeções futuras, disfun­ção cognitiva comumente associada ao Alzheimer. Susan Greenfield foi a primeira mulher a presidir a Royal Institu­tion, e mais antigo centro de pesquisa independente do mundo. Depois de do­ze anos, ela deixou o cargo alegando que vinha sendo vítima de uma campa­nha machista. Feita baronesa em 2001, a professora de Oxford é conhecida também por ser uma ativa populariza­dora da ciência na Inglaterra, produzin­do e apresentando documentários que lhe valeram a fama de ser a versão local de Carl Sagan, o lendário cosmólogo americano, morto em 1996.

Veja - Qual é o paralelo entre a doença de Alzheimer e os efeitos sobre o cérebro do uso exagerado de aparelhos conectados à internet?

Susan Greenfield - Fui mal interpretada em uma entrevista e passaram a me atribuir algo que eu não disse. O Alzheimer, à medida que avança, provoca a perda de células cerebrais, conduzindo o paciente a um estado de alienação crescente. Não afirmei que a tecnologia provoca a morte dos neurô­nios. Não há prova científica disso. O que realmente disse e reafirmo é que computadores, tablets, smarrphones, enfim, todos os dispositivos interativos, quando usados excessiva e ininterrup­tamente, deixam a mente em um estado de confusão sobre o aqui e o agora muito semelhante aos efeitos do Alzhei­mer. A pessoas nesse estado perdem momentaneamente a noção clara do que seja passado, presente ou futuro. Alguém imerso nesse universo virtual está sempre de prontidão para responder rapidamente a um e-mail ou uma men­sagem de bate-papo. Essa disponibilida­de instantânea para os apelos digitais interativos, dominada pelos sentidos e não pela cognição, deixa a mente em um estado semelhante ao provocado pelo Alzheimer ou mesmo pelo autismo. Ainda não existem evidências de que o cérebro sadio submetido de maneira intermitente a esses estímulos sofrerá transformações fisiológicas permanen­tes. No entanto, essa é uma hipótese a considerar seriamente a longo prazo.

Veja - A senhora saberia definir o limite máximo de tempo de imersão diária no mundo vir­tual ao qual alguém deveria obedecer?

Susan Greenfield - Pelos dados que temos em mãos hoje, ainda não somos capazes de definir esse limite. A questão não é propriamente o tempo que se passa a on-line. O cerne do problema é deixar de exercer, por causa da internet, outras atividades essenciais para o desenvolvimento pleno do cérebro e para a manutenção da saúde mental. Passar cinco horas seguidas jogando videogame ou no Facebook pode ser bem estimulante, mas são cinco horas a menos para abraçar alguém, caminhar pela praia, conversar cara a cara com um amigo em um bar ou restaurante. O cérebro de um bebê é um recipiente passivo de sensa­ções, que gradualmente começam a se organizar, o que permite a interpretação por associação das informações que ele recebe. A partir daí, o cérebro formula conceitos com base nas memórias e no conhecimento. É assim que cada um for­ma a própria identidade. A diversidade e a frequência dessas interações corriquei­ras são essenciais para a construção da individualidade não apenas na primeira infância, mas durante toda a vida. As crianças se formam subindo em árvores, sentindo o calor da luz solar no rosto, correndo atrás dos amigos em um parque. O perigo é satisfazer-se com um simula­cro digital das sensações reais.

Veja - A noção predominante entre os estudio­sos, porém, é que os estímulos digitais estão aumentando a eficiência do cére­bro humano. Essa noção é equivocada?

Susan Greenfield - Obviamente, qualquer atividade con­tribui para o desenvolvimento cerebral. Estudos feitos nas últimas décadas comprovaram a capacidade de o cére­bro reorganizar-se e reinventar-se a todo momento por meio de estímulos externos.É a neuroplasticidade. Os vi­deogames desenvolvem a coordenação motora e a memória. Isso está compro­vado. Nos adultos, sobretudo nos ido­sos, a interatividade mostrou-se uma excelente ferramenta para estimular a neurogênese, a formação de novas cé­lulas cerebrais, e até promover certo bem-estar mental. Há relatos científicos de diminuição dos sintomas da de­pressão em virtude de relacionamentos que o paciente retomou ou criou nas redes sociais. Minha mãe é Viúva, tem 85 anos e mora sozinha. Meu irmão e eu gostaríamos muito que ela tivesse uma conta no Facebook. Mas, infelizmente, ela se recusa. Meu ponto, en­tão, não é a condenação da era da in­formação. O que eu reafirmo é que a exemplo de um carro, que nos serve tanto mas com o qual podemos atrope­lar e matar alguém, obter o benefícios e evitar os males das nova tecnologias depende apenas do usuário.

Veja - A comunidade científica levou a sério seu alerta sobre o perigo de os videogames, na infância, estarem produzindo adultos "sem ética e atrofiados emocionalmente"?

Susan Greenfield - Essa é uma constatação irrefutável. Pense na fábula da princesa presa na torre. Existe uma enorme diferença entre a experiên­cia de ler sobre Rapunzel em um livro e a de participar de um game em que o objetivo é resgatá-la. O livro apresenta à criança a narração plena da história da princesa. A vida dela faz parte de um contexto. Já no game a princesa é ape­nas um objetivo, não importa nem como ela chegou a ser aprisionada na torre, não se constrói em nenhum momento um vínculo emocional com a persona­gem, tampouco se discutem as questões éticas de aprisionar alguém ou as virtu­des de caráter ou de coração do ato de salvá-la. A única coisa que importa é ganhar o jogo. Parece-me evidente que são duas vias bem distintas.

Veja - O convívio nas redes sociais aceita uma latitude maior na conduta ética das pes­soas?

Susan Greenfield - Sem dúvida. O mundo virtual, as pessoas podem se comportar de um mo­do como jamais fariam no mundo real. Elas perdem seus constrangimentos naturais, o que normalmente barra os maus comportamentos, a rede, muita gente se expõe como jamais faria nem mesmo no ambiente familiar ou na frente dos amigos mais íntimos. Essa liberalidade começou com os e-mails, mas atingiu o ápice com o Facebook. Os limites do certo e do errado estão cada vez mais difíceis de ser definidos. O livro O Senhor das Moscas, obra-pri­ma de William Golding, conta a história de um naufrágio de estudantes. Presos em uma ilha e submetidos a enormes pri­vações, eles perdem o verniz civilizatório e se tomam selvagens. Por alguma razão, estar nas redes sociais pode produzir o mesmo efeito de desconsideração com os outros que acometeu os estudantes do livro de Golding presos na ilha.

Veja - Essa regressão tem raízes na química ce­rebral?

Susan Greenfield - Sim. O prazer de estar on-line ou jogando um game libera dopamina em excesso. A dopamina participa do sistema de recompensa do cérebro, aquele que nos faz querer repetir algo prazeroso. Ela é liberada quando se come algo saboroso, como chocolate, e durante o sexo, por exemplo. Cada vez que a criança muda de fase no videogame, mais dopamina é liberada. A interatividade estimula o cérebro a produzi-la em demasia. Isso é um pro­blema. O excesso desse neurotrans­missor afeta diretamente o córtex pré-frontal, região do cérebro que é a sede da consciência, em que a pessoa pro­cessa o conceito que faz de si mesma e as noções de tempo e de espaço.

Veja - Antes eram as revistas em quadrinhos, depois a televisão, agora a internet e os games. Será que cada era tem seu falso inimigo do cérebro das crianças?

Susan Greenfield - Existe uma diferença crucial. As novas tecnologias são muito mais invasivas e têm um impacto infinitamente maior até mesmo que o da televisão. As pessoas agora estão sendo levadas a ter uma percepção da vida como uma sucessão de pequenas tarefas desconectada entre si, exatamente como no game da Rapunzel. O ser humano é produto de histórias, da preservação de memórias, enfim, da narrativa, não há mais narrativa. Tudo não passa de ação e reação.

Veja - Mas a senhora não acha que tem sido gi­gantesca a contribuição das tecnologias interativas para a educação?

Susan Greenfield - Uma pes­quisa divulgada no ano passado, na In­glaterra, derruba essa tese. Três quartos dos professores ingleses reclamam da crescente dificuldade de concentração dos alunos. Quase todos os pais entre­vistados afirmaram que os filhos gas­tam o triplo do tempo na frente de uma tela em comparação com o que dedi­cam a um livro, não concordo com os especialistas que sugerem distribuir tablets aos alunos. Isso não resolve. A única maneira de prender a atenção das crianças nos dias de hoje é ter pro­fessores inspiradores. A tecnologia é fundamental e excitante, mas, sozinha, não identifica nem desenvolve talentos.

Veja - A senhora foi criticada por colegas pelo fato de seus documentários e pa­lestras serem populares demais. O que acha disso?

Susan Greenfield - Costumo citar Carl Sagan, a quem admiro muito, quando me cri­ticam por falar de ciência de maneira fácil e acessível. Ele costumava dizer que era um suicídio viver numa socie­dade dependente de ciência e tecnolo­gia e não saber nada sobre ciência e tecnologia. Entendo os colegas que, por personalidade ou opção, são mais resguardados. Mas acho que eles não deveriam criticar quem está disposto a simplificar e divulgar assuntos cientí­ficos. No fundo, penso que os cientistas que não gostam de popularizar a ciência têm medo de, ao falar de igual para igual com as pessoas leigas, per­der a autoridade e o status.

Veja - É verdade que os integrantes da Royal Society chegaram a anunciar que pedi­riam demissão se a senhora fosse indi­cada para compor seus quadros?

Susan Greenfield - Aconteceram coisas terríveis nesse episódio. Uma delas foi a falta de ética de meus colegas. As regras de escolha de membros da Royal Society deveriam ser confidenciais. Quem afirmou que sairia se eu fosse escolhida deveria ter sido expulso. Além disso, vivemos em uma democracia. Se os membros não concordavam com meu nome, era só chegar a um consenso interno. Não era preciso me expor perante a opinião pública, como fizeram. O que houve, de fato, foi chantagem. As táticas utilizadas pelos meus cole­gas foram pobres e não democráticas. Infelizmente, a ciência é uma área na qual ainda impera o machismo. Isso é lastimável.

Veja - Em um artigo para o jornal The Guardian, a senhora afirmou que a gravidez era um contrassenso. Por quê?

Susan Greenfield - Referia-me à questão profisional. São poucas as mulheres na minha área que conseguem chegar aonde eu cheguei. E difícil desde o início. No colégio, as meninas recebem menos incentivos do que os meninos para seguir a carreira científica. Afinal, ciência é coisa de homem. Quando conseguem superar essa barreira, elas encontram outro obstáculo: a gravidez. Não sou contra ter filhos, mas na ciência, quem se afasta, mesmo que por pouco tempo, perde a vez, infelizmente. Eu optei por não ter filhos. Meu irmão nasceu quando eu era uma adolescente de 13 anos. Essa já foi uma experiência maternal suficiente para mim.

Veja - A senhora deixou a presidência da Royal Institution pelo mesmo motivo que quase a impediu de entrar?

Susan Greenfield - Fui a primeira mulher a comandar a instituição. Foi uma experiência única. Aprendi a ser uma administradora, consegui reerguer a Royal Institution e ao mesmo tempo modenizá-la. Também me aperfeiçoei como acadêmica. No fim de minha gestão, tive problemas sobre os quais estou proibida de falar por ordem judicial. Mas, apesar de tudo o que fiz até hoje como profissional, minha grande realização como cientista ocor­reu no campo pessoal, por mais esqui­sito que isso possa soar. Graças a meu trabalho, consegui realizar um sonho familiar. Apresentei minha mãe, baila­rina, e meu pai, engenheiro elétrico, à rainha Elizabeth II.

Fonte – Revista VEJA – Edição 2303 – Ano 46 - nº 2 09/01/2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário